domingo, setembro 02, 2001

CAPAZ DELA ESCREVER UMA CRÔNICA

foto de Marema

POÇO FUNDO

Estou no Sul, precisamente em Passo Fundo, lugar onde pedir um
cacetinho, não é falar em um órgão sexual masculino de tamanho
reduzido e sim pedir um pãozinho na panificadora. É um Brasil
longe, de expressões diferentes onde “fazer o rancho” é ir no
supermercado para comprar os suprimentos básicos. Um lugar frio,
mas de pessoas com bochechas rosadas e com muito calor humano.
E cuidado! Ao dirigir um carro aqui, se você causar uma colisão com
um veículo você não deu uma “batida”, aqui se fala “pechada”. Na hora
que ouvi a expressão, pensei em um pescador mais desaforado batendo
com um peixe em alguém. São sutilezas de cada região e que incorporei
rápido à minha comunicação diária. Capaz! Bá! Tchê! Tri-bom! Tu! Estou
me sentindo tão gaúcha que não paro de usar essas palavras. E posso
fazer isso, pude conviver com elas durante um bom tempo e as incorporei
ao meu vocabulário.

Preciso contar como é estar numa “Disneylândia de Escritores”,
onde a atração é a fala, os livros, a arte e o convívio com essas mentes
tão brilhantes. Tenho que dizer que cheguei aqui e fugi do hotel que estava
reservado com a mala aberta e os sapatos na mão. Vou confessar um
roubo também: peguei uma coleção de livros que estava no quarto do hotel
de que saí e que foi editada especialmente para esse evento. Me tornei
uma peregrina de quarto, e por conta dessa adversidade, não houve uma
só pessoa que não conheci. O hotel dos Escritores estava um formigueiro
e absolutamente lotado e cismei que ia ficar lá e não aceitei a palavra
“não temos vaga” como resposta.

Não devo ser tão linda como uma miss e nem tão feia e sem atrativos
que não merecesse convites de toda ala masculina. Dormi a primeira
noite com uma produtora de poetas e aí começei a receber bilhetes do
hotel com a expulsão. Ela foi embora no dia seguinte e seu quarto iria
ser ocupado por outra pessoa. E com a mala aberta de novo e fugida
como uma retirante prometi não arredar o pé dali. Saí tão corrida que
horas depois recebi da camareira meu pijama esquecido debaixo do
travesseiro, já em outro quarto.

No jantar, as brincadeiras de um escritor de que pude me apaixonar
por suas palavras, chamado Alcione Araújo, que guardou minha
mala em seus aposentos falou com o não menos apaixonante Ziraldo.
- Essa aqui é uma jornalista de Campinas e está sem quarto,
desabrigada e sem teto, você pode hospedá-la?
E Ziraldo com aquele sorriso lindo, aquela simpatia só dele disse.
- Minha querida tenho 70 anos, esqueci o viagra e você pode ir para
o meu quarto sem susto, não vai acontecer nada.

Com todo o vigor que vi na figura do Ziraldo, sei que ele não precisa
de viagra nenhum, e morta de vontade de aceitar o convite pra dormir
em companhia tão ilustre ainda continuei minha busca por uma cama
só minha. Achei abrigo com uma escritora e professora da USP -
Ana Mei, que aceitou compartilhar seu quarto comigo. Quando sentei
na cama aliviada, pensei:enfim tenho um teto agora. Então ouço uma
batida e uma camareira, me pede para assinar uma ordem de serviço.
Assustada como estava, pensei.
- Meu Deus devo ter assinado uma ordem de expulsão de novo.

Descobri rápido que era apenas uma gentileza da minha companheira
de quarto. O papel que assinei era só uma ordem de serviço de
solicitação de cabides extras. Um gesto tão delicado de atenção que nem
cheguei a usufruir, minhas roupas ficaram todas na mala, mas guardei o
carinho da recepção de minha nova amiga que aceitou compartilhar seus
aposentos comigo.

Fiquei no lugar onde queria estar, rodeada de escritores por todos
os lados.Encontrei o “grande” escritor chileno Antonio Skármeta,
autor de um dos livros mais poéticos e tocantes que já li “O carteiro e
o poeta” no hall do hotel, sozinho e mesmo sem falar nenhum idioma
direito me aventurei a travar conversa. Ele me deu toda atenção,
falamos todos os idiomas juntos: inglês, italiano, espanhol, francês e
alemão para que ele conseguisse me entender. Ele deve ter notado
minhas mãos trêmulas e meu olhar embevecido por sua presença tão
próxima. Sua dedicatória no livro que comprei “As bodas do poeta” foi
linda, para alguém que sabe apenas pronunciar poucas palavras em
cada idioma.
“Rosi Luna! La más poliglota e encantadora de mis lectoras! Com cariño.
ASkármeta. 2001”

Não quero esquecer nenhum escritor... zap zap zap 1 2 3 4 foram tantos
que não dá pra citar o nome de todos. Viajei com a Martha Medeiros, e o
Ignácio Loyola, que achava com um jeito turrão e sério, é uma figura super
simpática e me contou o fim do seu livro “ Veia bailarina”, fiquei de mandar
minha crônica “O peixe bailarino”. Salim Miguel, Antônio Torres, Affonso
Romano, Marina Colasanti, Carlos Nejar, Renato Tapajós, Deonísio da
Silva, Mano Melo, Abel Silva, Ricardo Silvestrin, Ruth Rocha, Ziraldo,
Frei Beto, não dá pra lembrar os nomes, uma fila de mais de cem pessoas
entre escritores, mímicos, poetas e artistas.

E não posso esquecer o rosto alegre da mentora de tudo isso, sempre
sorridente até no horário da nossa partida às cinco horas da manhã, a
Tânia Rösing - que montou seu sonho da Jornada Literária numa lona
de circo e lotou com mais de quatro mil pessoas.

Preciso só descrever a cena que ninguém viu mas todo mundo vai
sentir a emoção comigo. O Alcione Araújo é um escritor daqueles
em que o “fator humanidade” pesa mais que tudo. Ele tinha acabado
de dar uma entrevista para umas estudantes e pude ver a moça loira
chorando com o gravador na mão e o escritor derramando uma lágrima
sentida quando falava da fome no Brasil. Gravador desligado, coração
apertado.

Chega uma garota de dezessete anos com o nome Wanderléia, com os
olhos cheios de lágrimas e falando passagens do livro “Nem mesmo
todo oceano” do Alcione, um livro tão grosso como o ultimo livro que li
“Crime de castigo” de Dostoiévski . O escritor olhava incrédulo, como uma
garota tão nova poderia estar lendo e apaixonada por sua obra. Ela contou
com riquezas de detalhes cada passagem do livro. Eu ali expectadora da
cena juntamente com as meninas da entrevista anterior. Olhávamos a
candura do encontro de um escritor e uma leitora. Segurava minhas
lágrimas, pois tinha medo de que minhas lentes de contato saíssem
nadando com o acumulo de água nos meus olhos. Mas a sua ultima fala
desarmou todos nós. A menina disse.

– Olha, adorei seu livro, li todo e vim de outra cidade só para te conhecer.
Eu li seu livro emprestado, não tenho dinheiro para comprá-lo.

Nós nos abraçamos numa rodinha, escritor e leitores juntos, numa
comunhão de sentimentos. Nem me lembrei que ia perder as lentes
de contato no choro compulsivo.Nunca tinha visto um escritor chorar
abraçado com um leitor. Choramos todas as lágrimas que encontramos
nesse Brasil, sem dinheiro, com fome de cultura, de leitura. Isso é fundo...
muito fundo, é um poço fundo de uma dor da impotência de não poder dar
livros a quem quer ler.

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Rosi Luna é jornalista em Campinas - SP, não é escritora, pois não
tem livros publicados: “Tenho meu olhar e minhas palavras pra achar
pessoas anônimas que viram astros por sua força, por sua coragem,
por seu sonho.”
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