quinta-feira, abril 12, 2001

ESSA É MINHA CRÔNICA DA SEMANA
COM DESEJO DE FELIZ PÁSCOA

O TEMA: FAZ DE CONTA

Andei mudando o último parágrafo e
colocando umas vírgulas...



O PEIXE BAILARINO
[Rosi Luna]

Faz de conta que história de pescador é bem assim, você pesca uma
piaba e fala que pescou um tubarão, se não aumentar perde a graça.

Faz de conta que você pensa em aumentar essa história que começou
com um minúsculo peixinho e que alcançou tantas proporções.

Faz de conta que chegou um peixe na sua casa, ele veio em um saco
plástico e foi dado de lembrançinha em uma festa infantil. Ele é
um intruso na sua vida, apesar do seu signo ser áquario, você
nunca pensou em criar peixe no cativeiro.
Mas ele chegou e precisa de lugar pra ficar. Você abre todos os
armários da cozinha e percebe que em toda a sua louça, não tem
nada suficientemente fundo para abrigar o novo hóspede. A única
saída é ir na vizinha do apartamento da frente. Já é tarde da
noite e não vai dar pra comprar áquario a essa hora. A vizinha
arruma um pirex verde escuro, e você coloca o peixe lá dentro.

Faz de conta que o peixe corre de alegria pelo pirex, rodopia,
mergulha, pra quem estava morando em um saco plástico, aquele
pirex era um verdadeiro palacete. A lembrançinha é um kit com
peixe, comida e ainda tem as instruções de como alimentar. No fundo
mesmo, você não queria que tivesse nenhum peixe ali na sua frente.
Mas como fazer de conta que não viu a carinha de felicidade
estampada do seu filho, com seu primeiro bichinho de estimação.
O jeito é encarar e tentar observar aquele peixe, e cuidar para que
sua estada seja o mais agradável possível. O lugar escolhido para o
pirex é em cima da sua pia, isso quer dizer que a partir de agora,
nada de respingos de gordura e nem de detergente, tudo pode afetar
a rotina do peixe.

Faz de conta que a sua vida que antes era tranquila passa a girar em
torno do peixe. Seu filho acorda falando do peixe, almoça falando do
peixe e dorme querendo levar o peixe para a cama. Só se fala em
peixe e isso já dura uma semana.

Faz de conta que você acredita que não vai olhar áquario, pois
você sabe que vida de peixe recluso talvez seja curta e não vale
o investimento.

Faz de conta que você esqueceu o que tinha dito antes e foi na tal
loja de áquario e ficou chocada com a quantidade de acessórios que
o vendedor queria lhe empurrar. Era simples; áquario, pedras, luz
azul, pastilhas, bomba, enfeite, papel de fundo, plantas plásticas.
Quando ele traz a conta, quase duzentos reais.

Faz de conta que você tem uma atitude imprevizível e faz a
singela pergunta.
- Quanto custa um peixe como esse aqui? E aponta para o que seria
um irmão gêmeo do que vivia tranquilamente no pirex.
- Ah! Esse peixe custa só cincoenta centavos.
Você olha para o vendedor e argumenta.
- Quer dizer que para cuidar de um peixe de cincoenta centavos,
preciso levar toda essa parafernália caríssima.

Faz de conta que você finge não notar os olhinhos do seu filho
brilharem de tristeza, quando diz que vai pensar mais um pouco e
que não iria levar nada. Ainda deu tempo de perguntar ao vendedor
lá em um cantinho da loja, quanto tempo de vida teria ele sem
a bomba de ar. O vendedor deu uma média de vida de quinze dias.

Faz de conta que você passa a observá-lo todos os dias, e mesmo sem
querer, começa a se afeiçoar ao peixe. Ele estava ali rodopiando na
água, e quando você estava sem idéias, ia lá tomar conselhos.
As vezes dividia até a solidão de algumas horas, e já o sentia seu
companheiro de mergulho ou de meditação profunda.

Faz de conta que você notou que tinha algo em comum com o peixe.
Quando batia uma tristeza vocês gostavam de afundar, afundar,
afundar e quando batia uma alegria, vocês gostavam de dançar.
A diferença básica estava no habitat, ele morava em um apertado
pirex e você morava em um apertado apartamento.

Faz de conta que você está no computador só vestida de camiseta e
calcinha e está terminando um texto importante. Seu filho que só
respira peixe faz alguns dias, lhe avisa que está na hora de
alimentar o bichinho de estimação. Você pensa em não parar naquele
momento, mas algo lhe impusiona e você vai na frente e acende a luz
da cozinha.

Faz de conta que você olha para o pirex e o peixe não está lá.
Você dá um grito de pavor e vê o peixe todo roxo pulando no chão
da cozinha.

Faz de conta que é uma cena de filme surrealista, você abre a porta
do apartamento e sai gritando pela vizinha que é super corajosa e nem
lembra que estava vestida apenas de camiseta. A vizinha pega o peixe
com dificuldade e consegue colocá-lo de volta no pirex. Depois de
tanto susto o peixe fica paralizado.

Faz de conta que você achou que ele estava morto, novos gritos de
pânico e a gente dá um tapinha de leve nele. Ele rodopia e enfim
assustado, tem uma diarréia e você vê exatos três rolinhos saindo.
Não era pra menos depois daquele susto, tinha mais é que se aliviar.

Faz de conta que sua vizinha morre de rir de ver você de calcinha.
Você ri nervosamente por não ter tido coragem de salvar sozinha seu
companheiro bailarino das águas.

Faz de conta que dá para perceber que você parece um peixe
assustado, você tem medo de muitas coisas, e de muitas sensações
diferentes. Os dias foram passando e você passou a respirar peixe
de manhã, de tarde e de noite. A essa altura ele já era o seu
bailarino preferido, pois você fica imaginando que grande salto ele
deu pra pular do pirex e mesmo assim conseguir sobreviver.

Faz de conta que você faz um comparativo, você também dá muitos
saltos pra tentar sobreviver nesse redemoinho chamado vida.

Faz de conta que você acha que tudo ia bem, quando quase nos exatos
quinze dias de pirex, o peixe começa a ficar apático e mostra sinais
de cansaço evidente. Foi um domingo de terror, na sua pia já estavam
dois baldes, outro pirex e tudo foi feito para que ele voltasse
rodopiar no seu ballet aquático.

Faz de conta que ele morre e você precisa ensinar ao seu filho a
primeira sensação de perda. Você conhece tudo sobre essa sensação
dura, fria e difícil, mas não tem palavras pra explicar.
E chorando arruma uma caixinha de fósforo e uma cruz feita com dois
palitos de dente, chama sua vizinha e convida para o velório
do peixe. Aos prantos você promete comprar outro peixe, mas seu filho
não aceita, ele queria o "seu peixe" aquele que jazia inerte na
caixinha de fiat lux.

Faz de conta que só nessa hora você percebe que não era cincoenta
centavos o valor do peixe, era o tamanho do amor que ele tinha que
nenhuma moeda seria capaz de comprar.

Faz de conta que choveu torrencialmente e com o rostinho em lágrimas
seu filho inconformado pergunta se o peixe está bem lá na árvore
que o enterramos. Respondo que agora ele deveria estar muito bem
pois ele estava nadando rumo ao céu. Afinal de contas o peixe que
tinha se convertido ao catolicismo nos últimos minutos de vida e
agora já tinha até virado peixe-anjo-nadador.

Faz de conta que passasse no dia seguinte um fumante e achasse
aquela caixa de fósforo no chão, pois a cova era rasa e
provavelmente com a chuva ela saiu do lugar. Imagino a cara de
espanto do fumante ao abrir pensando em achar fósforo e indo dar
de cara com um peixe morto.
Podia levar um susto tão grande que podia parar de fumar. E sem
querer ser partidária da liga anti-tabajista, mas que você ia
gostar você ia e seu amigo peixe com certeza ia rodopiar
bailarino de alegria.

Faz de conta que você confessa que é da geração saúde, não
bebe, não fuma e adora corpo em movimento.

Faz de conta que você inventou tudo isso, mas que era tudo a
mais pura verdade e que agora você está de camiseta com calcinha
de novo. E você tem certeza que o malandro do seu vizinho vai ficar
torcendo pra você sair assustada com as pernas e a calcinha de fora.

Faz de conta que é Páscoa e você não quer comer peixe, e você
promete que vai resistir aos quitutes da Inajara, mas quando você
sentir aquele cheiro de têmpero baiano você vai cair de boca e nem
vai lembrar da promessa.

Faz de conta que amanhã você vai olhar áquario; é no jornal na
coluna de horóscopo.

Faz de conta que acredita...

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